sábado, 25 de fevereiro de 2012

Lá fora






ela fazia todo mundo pensar que estava certa.
fazia caras e bocas e no auge dos seus 16, ainda brincava de boneca.
cortava todos os cabelos delas, pintava as unhas e o corpo,
pintava os labios e depois deixava-as num canto,
onde ficavam e acabavam sendo esquecidas.
fumava escondida da mae e saia cantando pelos cantos da casa, ate que se deitava e dormia no sofa, como rotina.
ela tinha planos pro futuro, que incluiam fazer uma tatuagem,
viajar pro Texas e fazer mais alguns furos.
ela tinha sonho de crianca, alma de artista e desejos de prostituta, mas nao saia, nao bebia, nao se abria.....
juntando tudo isso, algo mais normal hora ou outra apareceria.
ela gostava de mentir. mentia pra todo mundo por puro prazer de fazer
os outros acreditarem. e nao voltava atras nao, e ai de voce se duvidasse de uma palavra dela. ela te convencia até que você levantasse da cadeira batendo o pé pelo que antes você negava com a maior certeza que poderia haver.
ela tinha olhos penetrantes e era bem inteligente, embora eu nunca tivesse a visto com um unico livro na mao. sabia de tudo e de todos e, impressionantemente, ela (quase) sempre estava certa.
bom, agora ele deve ter seus cinquenta e muitos anos, mora sozinha em uma casa que nao tem nada alem de uns lencois empoeirados, um guarda-roupa caindo aos pedacos e alguns retratos velhos e mofados dentro de gavetas emperradas (ou trancadas).
Nas janelas ela tem roseiras lindas, as quais ela cuida como se fossem o maior amor de sua vida. e talvez ate seja. Depois que ela terminou seu ultimo relacionamento, nunca mais a vi com ninguem. Ela, que já não gostava de sorrir, nunca mais expressou qualquer sentimento, a nao ser quando abria suas janelas pra cuidar de suas belas roseiras.
Ninguém a conhece tão bem quanto eu, creio que nem ela mesma. Sua casa não tem espelhos e nem luz, apenas algumas velas espalhadas pelos cantos da sala vazia.
Uma vez estava debruçada na janela, quando um homem que passava pela rua arrancou uma de suas rosas. Lembro-me que na hora pensei em correr na floricultura e comprar outra pra repor antes que ela visse, mas alem dela perceber, iria ficar mais furiosa ainda. Quando ela viu, manteve-se em frente a janela imóvel e pálida. Nenhuma marca em seu rosto, nenhum nada. Parecia que sua alma havia escapado por aquela janela, tentando encontrar sua rosa, mas saiu tão rápido que esqueceu que sustentava um corpo.
Cansei-me da situaçao e fui deitar. No dia seguinte, quando olhei pela janela, a roseira nao estava mais la. Bati na porta que estava entreaberta mas ela havia ido. Segundo sua vizinha, ela nunca esteve ali. Talvez ela não fizesse muito barulho.. talvez, quem sabe, a vizinha era meio maluca... mas insistiu, tirando uma chave do molho e pedindo que eu a acompanhasse. ela abriu a porta da casa e a unica coisa que havia ali era um piano branco de cauda velho e trancado. A mulher então sentou-se ao piano, virou-se pra mim e explicou que uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade. eu continuava achando que ela era louca. e continuou a conversar, dizendo que ha anos ela morava ao lado desse apartamento e que todos que iam compra-lo nao gostavam, até que olhavam pela janela e se apaixonavam mas sentiam-se incomodados de ter um piano tao lindo ocupando metade da sala. teriam que tirar, mas nao queriam. ninguem chegava perto desse piano, so ela. e aprendeu a tocar o piano e fez da casa um refugio, pra onde ia quando precisava descarregar toda sua angustia. mas ela nao desenvolvia, que angustia era essa? mas eu nao queria mais saber.
Entao pedi que tocasse uma musica pra mim. ela sorriu e disse: "você não se cansa, né?"
Fui pra casa, me beliscando o caminho inteiro. Cheguei em casa e passei rapido pela minha janela, mas percebi de canto de olho, que as flores estavam na janela novamente. Voltei e olhei e elas realmente estavam lá. Não só elas, mas ela também estava. Sai de casa, atravessei a rua e fui correndo ate sua casa, quando abri a porta nao havia ninguem alem da vizinha, tocando piano, com a janela aberta, sem flores ou vestigio delas.
Sentei-me em um canto e fiquei escutando a musica, até que adormeci. Acordei com meus dedos doendo, abri os olhos e o chão branco estava com alguns pingos de sangue e havia uma rosa. Corri até a porta da vizinha mas ninguem atendia. Havia me deixado um bilhete na porta: Uma mentira contada mil vezes torna-se verdade.
Desci as escadas que davam para a rua, voltei ao meu quarto, olhei em volta e tudo estava em ordem: as bonecas estavam ali, meu cinzeiro como sempre cheio, meu violao e meu baú cheio de livros, dentro do armario. não faltava nenhum. tudo parecia estar no lugar.
Mas havia algo faltando no quarto. eu sabia que havia, so nao sabia o que. e fiquei pensando por horas e horas e interminaveis horas.
Dessa vez, eu estava sozinha com ninguem em volta. partilhando comigo mesma a dor de ser a personagem de uma interminável historia.
eu sabia, eu entendia, mas nao conseguia me contentar com só um pouco daquilo tudo.
Uma mentira contada mil vezes torna-se uma verdade. Se a mentira tem pernas curtas, entao..... devo contar-lhe que ela fazia todo mundo pensar que estava certa.